Fernanda Selva cria comunicação através da Arte e do Cinema

CTV LAB
14 min readApr 23, 2021
imagem: acervo pessoal — Fernanda Selva

Fernanda Selva é fazedora de coisas no mundo audiovisual. Trabalha como figurinista, diretora de arte e produção em filmes, clipes e propagandas que você tá sempre vendo pela sua telinha. Você encontra alguns projetos que ela já desenvolveu no ig @fernandaselva_ e hoje vamos saber um pouco mais sobre os bastidores desse tipo de produção e como ela enxerga o presente e o futuro do audiovisual BR.

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@juliagtr: Como foi seu processo até chegar nesse mundo da produção?

@fernandaselva_: A história é meio longa, eu me formei em Arquitetura em Bauru, mas sempre quis Cinema, queria Direção de Arte, mas meu pai não deixou, disse que eu precisava estudar outra coisa, mais útil; ele é engenheiro. Eu gosto de cinema por causa dele, mas ele não achava que daria certo, então fui parar na Arquitetura, que foi o curso que ele aceitou e que poderia me levar pra essa área de cenografia. No meio do processo eu até me esqueci desse objetivo final, mas tive um professor muito reconhecido nessa área de cenografia e direção de arte que me relembrou dessa vontade que tinha se perdido. Acabei fazendo meu TCC em cenografia, e com amigos do curso de audiovisual descobri a AIC (Academia Internacional de Cinema), uma escola de cinema aqui em São Paulo, que tem vários cursos livres. Tava rolando muito da galera entrar no mercado de trabalho a partir desse curso e assim que me formei e voltei para São Paulo, fui atrás de estudar Direção de Arte na AIC.

Eu estava fazendo o curso e amando tudo, aproveitando pra fazer os contatinhos, conhecer professores que pudessem me apadrinhar e me ajudar a posteriormente entrar no mercado de trabalho, que foi o que rolou com o resto da galera. Eu não tinha muitas dúvidas, mas sempre fui bem participativa e aí teve um professor que me notou kkkk e me apadrinhou, me chamou para trampar com ele em um curta e logo apareceu outro trampo de Direção de Arte que ele não daria conta de pegar e me indicou. Fiquei desesperada, mas ele “não, você tá pronta, tá preparada, pode ir”, aí eu fui. Cheguei lá achando que era entrevista, mas o pessoal já foi me passando roteiro, eu já tava na equipe, sabe? E esse curta foi um dos trampos mais fodas, eu posso dizer, é um curta que já rodou em mais de 15 países, mais de 40 festivais, mais de 10 prêmios; eu ganhei o prêmio de Direção de Arte agora, e até hoje ele tá dando fruto, fizemos ele em 2016, então foi super legal.

Nesse processo conheci várias pessoas muito legais que encontrei mais tarde em outros projetos também e tal, mas assim, o começo é bem devagar, sabe?

Eu fui fazendo uma publicidade, um trampo ou outro com essas pessoas que eu conheci, mas é bem devagar, não sei se vou conseguir dizer exatamente como as coisas foram acontecendo.

Quando eu tava no curso eu pensei: a Direção de Arte tem vários departamentos: figurino, objetos, cenografia, caracterização, maquiagem e aí eu pensei que pra chegar a ser diretora de arte, eu teria que fazer algum desses caminhos, mas precisava entender com qual deles eu me identifico mais. Quando eu cheguei no figurino o bagulho foi identificação instantânea, não sabia mais nem se eu queria direção de arte ou não. Eu ainda pego projetos e curtas na área, gosto muito, mas na prática eu prefiro trabalhar com figurino. Porque o cinema, pra todos os envolvidos, é uma atividade muito exaustiva. A gente trabalha 12 horas no mínimo, a gente não tem fim de semana, mas com figurino eu durmo, sabe? E diretor de arte nenhum dorme. Na área de figurino eu sinto que minha vida se aproxima mais de uma vida quem tempo pra si, tempo pra viver. E assim eu fui indo, fiz assistências, logo depois já me chamaram pra assinar. Depois fiquei um tempo parada e recorri àquele mesmo professor que me indicou pra um longa-metragem como assistente e no próximo já assinei também. Esse foi o primeiro longa que eu assinei.

Assim, é um meio que eu não vou falar que você entra só pelo seu portfólio, vou estar mentindo. É muito sobre contato mesmo, quem você conhece, os contatos que você faz, e é lógico que seu trabalho tem que ser bem feito também. Mas a real é que a partir dos trabalhos eu fui conhecendo pessoas, desenvolvendo com elas, mostrando meu trabalho e aí fui sendo chamada pra outros projetos e outros trabalhos, recentemente assinei a minha primeira série também. Eu não tenho muito tempo de carreira, até porque é uma área que não acaba com aposentadoria, né? Mas também não tô pensando muito sobre isso. Deveria, mas não tô kkkkk. Mas é algo que eu imagino que vou trabalhar muito ainda e diante disso vejo que ainda tô muito no começo. Os primeiros grandes trabalhos tão aparecendo ainda.

@juliagtr: Trabalhar com Arte pode não parecer, mas tem tudo a ver com comunicação e construção de narrativas. Como você enxerga isso dentro do seu trampo?

@fernandaselva_: Eu tenho um amigo que tem essa teoria maravilhosa de que o tipo de conhecimento que você precisa ter pra trabalhar no departamento de Arte (direção, figurino, etc), não é um conhecimento quantitativo, você não mede em grau técnico, ele é sobre o nosso olhar, sobre nossas experiências, é sobre o nosso conhecimento empírico. Numa reunião a gente discute coisas tipo: como é o movimento que uma baleia faz quando ela tá nadando? Qual é aquele tipo de bolsa que tem uma alça que dá um nozinho aqui em cima? A diferença que vai fazer entre um chinelinho de dedo e um sandália de tira, sobre a diferença entre esse ou aquele tom de azul. Como funciona uma piscina de fibra quando você enche fora do buraco? Esse tipo de detalhe, a minúcia com que cada decisão é tomada, vai passar uma ou outra mensagem, é um trabalho de muito estudo, pesquisa e dedicação.

@juliagtr: Você mencionou que foi premiada recentemente, pode falar mais sobre isso? Como é ser uma profissional premiada internacionalmente? Você percebe diferenças entre a recepção da cultura brasileira pelas pessoas de fora do país em comparação com os brasileiros?

@fernandaselva_: O curta Eu sou o Super Homem ganhou vários prêmios, tanto fora do país como aqui no Brasil também. Na Venezuela eu fui indicada e ganhei, nesse festival o filme ganhou todas as categorias em que foi indicado, levamos tudo. Esse especialmente teve bastante visibilidade tanto fora quanto aqui no Brasil também, mas isso que você fala, da desvalorização da cultura brasileira é muito real mesmo. Assim, pra o pessoal dentro da área é menos, mas existe até entre a galera que é envolvida mesmo, sabe? No geral aqui no Brasil as pessoas não valorizam mesmo o cinema nacional, mas tem muitos fatores envolvidos pra isso também. Eu acho que o acesso ao cinema nacional não é nem incentivado, nem facilitado. Por exemplo: os cinemas onde passam filmes brasileiros que não sejam Globofilmes e grandes produções do tipo, são só as salas de cinemas de arte e isso falando de São Paulo. Cara, quando eu morava em Bauru, era uma questão assim: tem um cinema, com sete salas e nas sete tá passando Velozes e Furiosos.

Às vezes a pessoa só reproduz falas sobre o cinema nacional, porque pra assistir ela vai ter que ou fazer o hacker e baixar ou ir atrás de plataformas como SP Cine, por exemplo, mas assim, o acesso não é o mesmo de uma sala do Cinemark. Todo mundo que já pisou em uma sala de cinema, sabe que existe a sala do Cinemark, onde passa Velozes e Furiosos; até existe uma cota pra produções nacionais, mas eu acho insuficiente perto da quantidade de filmes que a gente faz por ano. Existem algumas iniciativas de uma galera querendo levar as produções pra as periferias, fazer esse movimento, mas não é uma iniciativa dos grandes veículos e distribuidores, não é uma coisa que parte deles.

Mas também temos grandes clássicos que ninguém lembra quando vai falar mal, que é O Auto da Compadecida, Cidade de Deus, vários desses grandes filmes que se tornaram muito populares e que todo mundo ama.

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@juliagtr: Na nossa série de lives Desmistificando a Economia Criativa, a gente falou um pouco sobre os diferentes tipos de conhecimentos que existem no mundo e como muitas vezes se preza pelo conhecimento acadêmico em detrimento do conhecimento mais empírico que se transmite através da oralidade por gerações. Pensando nisso que estávamos conversando sobre o cinema nacional, você acha que esse academicismo pode ser um dos geradores desse distanciamento das pessoas com o cinema BR?

@fernandaselva_: Eu tenho uma crítica com esse tipo de cinema muito de arte, assim, não é que eles não tem que existir, eles tem que existir, mas uma discussão que eu também tenho com os meus colegas de profissão é que além de todos esses problemas de distribuição, tem muitos filmes que não caem no gosto popular porque: pra quem eles falam, sabe? Com quem eles estão conversando? A gente tem falado muito isso na minha roda: a gente tá fazendo filme pra quê? Porque que lindo aquele filme, meu gosto particular é pra filmes muito sensíveis e poucos diálogos. Mas isso tem apelo popular? Não adianta querer enfiar isso goela abaixo, então assim, se você quer também comunicar com essa galera, você precisa falar da maneira que interessa e sobre o que interessa. Você pode fazer isso também com muita arte envolvida.

Eu acho que por esse caminho a gente também teria que tentar correr. Esses filmes clássicões são assim, tem esse apelo popular mas também são lindos, eles conseguiram juntar as duas coisas de alguma maneira e por isso explodiu, sabe? E eu não to falando sobre fazer filme pensando em ‘vai explodir’ ou não, mas é um filme que vai chegar nas pessoas. Tem filmes que são tudo isso e ainda assim as pessoas não conhecem, então volto no ponto anterior, sobre a distribuição, mas acho que muito é isso também, de pensar com quem você quer falar.

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@juliagtr: Nossa, isso que você disse sobre pensar com quem você quer falar também traz outra pergunta importante que a gente precisa fazer junto, que é: quem está falando? Tipo, de quem vem essa narrativa? Não dá pra eu querer escrever sobre algo que eu não vivo.

@fernandaselva_: A gente também critica isso: quem é que tá fazendo? Porque você olha a galera fazendo filme sobre periferia, mas a equipe é toda branca, classe média, hétero, cis, tipo assim, normativa total. Eu sou uma mulher preta, então quando eu to envolvida, tem a chance de eu ser a única preta ali e talvez uma das poucas mulheres porque assim, eu vejo as equipes no geral tendo mais mulheres e eu tenho a sorte de ter me envolvido em projetos que tem cada vez mais pretos, mais trans, mais mulheres, mais gays, as equipes tem sido cada vez mais plurais. Mas eu sei que isso é uma minoria, se você for colocar mesmo na ponta do lápis, a gente ainda tá muuuuuito atrás, então assim, é preciso pensar na pluralidade da equipe, ou seja, de todo mundo q tá envolvido pra fazer aquele filme e se essas pessoas de quem eles estão falando estão inclusas ali e também qual é o retorno pra a população de quem você tá explorando a história.

A gente fala muito sobre isso lá, porque assim, as vezes, uma equipe de cinema é muito sanguessuga, ela entra numa comunidade, bagunça tudo, extrai tudo o que interessou e depois vai embora, beijo, tchau, e não deixou NADA de contrapartida ali. Usou um dinheiro que é de um edital, ou do governo, a gente precisa devolver alguma coisa, não só explorar a história.

@juliagtr: O que você dá de conselho pra quem tá começando a criar e fazer arte, mas tem medo?

@fernandaselva_: Olha, eu não vou ficar aqui falando nada que não seja verdade. Se você não é privilegiado, não vai ser fácil, você pode até querer desistir, não quero ser dramática aqui, mas é uma real. Mas eu acho assim, você tem que começar a produzir da maneira e com os recursos que você tem e se envolver com pessoas que também estejam nesse começo, construir com uma galera que também tá começando, que também tem vontade. No começo, pode ser muito foda porque a gente faz isso não é só porque quer, não é só um hobby, a gente quer pagar contas com isso, e as vezes a grana pode faltar. No começo você vai se submeter a trabalhos que são só pra fazer portfólio, e é importante, porque é como eu falei, você não vai chegar, apresentar portfólio e conseguir um trabalho, mas você tem que fazer alguma coisa, porque assim, se você não tem material nenhum é muito difícil conseguir participar de alguma coisa só porque alguém tá te dando uma oportunidade, você tem que ter algum produto. Então se você conhece uma galera que também tá afim é importante montar essa rede e produzir junto com essas pessoas esses primeiros trabalhos, até você ir construindo seus caminhos e seus contatos. Se você não vai começar já envolvido com alguém, o caminho é ir tentando fazer essas coisas de maneira mais autoral e trocando recursos e processos com essa rede, porque se tem uma coisa que não vai rolar é você fazer sozinho, cinema não se faz sozinho, é um trabalho em equipe.

Eu acho que você não pode se desesperar e mirar lá na pessoa que você quer ser logo de cara, e se você não fizer aquilo de imediato, você desiste e tal. Você não pode, cara, você tem que entender que é um processo que você vai começar aos poucos e fazendo com o que der, se envolvendo com as pessoas que estão ao seu alcance e conhecendo cada vez mais pessoas, indo devagar e conectando essa rede, criando a sua própria rede aos poucos. Mas você vai estar sempre dependendo dessa rede, porque não existe cinema de uma pessoa só. Um ajuda o outro, você é a pessoa que vai ser indicada, mas também é a pessoa que vai indicar. É legal no começo você pensar no tipo de profissional que você quer ser, pra que conforme você vai construindo essa rede, você vai se envolvendo com as pessoas que tem um pensamento parecido com o seu. É claro que às vezes, pra ganhar dinheiro, a gente acaba se envolvendo em alguns projetos que não tem nada a ver, e às vezes é traumático, se for traumático você pode escolher não fazer mais isso, mas o fato é que tem uma coisa que eu tenho percebido, que quanto mais você se envolve com pessoas que tem um pensamento parecido com você, maaaais você se envolve com pessoas que tem um pensamento parecido com você. Mas no começo não tem muito pra onde correr, é um trabalho que você aprende fazendo e vai aprendendo como funciona o mercado, onde você quer estar e como se faz, então algumas experiências negativas não tem muito como fugir. Mas todo o processo é sempre de muito aprendizado, sabe? Você nunca vai sair de lá no 0x0. Porque cada projeto é muito diferente do outro, então alguma coisa você vai tirar dali.

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@juliagtr: Como é pra você, perceber que o que você faz tem impacto na vida de outras pessoas?

@fernandaselva_: Esse lance é o que me motivou a escolher fazer isso na minha vida, é justamente saber que vou contar uma história, que vai atingir uma pessoa e vai mudar alguma coisa, nem que esteja só retratando aquilo que precisa ser retratado na minha geração. Trabalhar em alguma coisa que tem uma mensagem, que vai comunicar alguma coisa que eu acho importante, é por isso que eu faço cinema.

@juliagtr: Como você quer que seja esse futuro que estamos construindo?

@fernandaselva_: A pandemia colocou exceções e condições pra o que a gente já fazia, que na verdade parecem a conquista de uma luta que já tava sendo travada dentro da classe, o lance da gente trabalhar realmente 12 horas. Mas é complexo, por um lado, a galera tá trabalhando em equipes mais reduzidas, o que acaba acumulando funções, mas tem trabalhos e trabalhos. Eu acho assim: de certa maneira as condições que a pandemia impôs dificultam muito as pequenas produções, porque envolve uma necessidade de verba maior pra ser destinada a medidas de segurança e proteção da equipe (o que não existia antes), mas também tem um lance de que no meio dessa coisa, surgiu uma grande oportunidade da gente reivindicar coisas que a gente já vinha reivindicando, mas com pouca força, o que acabava permitindo explorar a jornada, por exemplo. Hoje isso não pode acontecer mais por conta dessas medidas de segurança. Então acho que isso abriu uma oportunidade pra a gente retomar com força essa discussão da jornada de trabalho, por exemplo, condições mínimas, mas decentes de trabalho. Eu espero que a gente saia da pandemia com todas essas questões que agora as pessoas estão se vendo na obrigação de cumprir, que elas continuem sendo cumpridas, mas que não haja esse movimento, que também tá rolando, de acúmulo de função, de diminuição do cachê.

imagem: mosaico no instagram: https://www.instagram.com/fernandaselva_/

@juliagtr: Quem são suas referências? Tem algum trampo que você curte muito e gostaria que outras pessoas conhecessem?

@fernandaselva_: É difícil responder isso, mas se eu tivesse que escolher uma coisa pra as pessoas conhecerem, eu diria pra elas irem procurar os preto que tão fazendo cinema. Desde um Spike Lee, Ruth Carter, Jordan Peele, vejam os pretos, ouçam os pretos, eu não poderia indicar outra coisa. Também não posso deixar de indicar o pessoal que produziu o filme da Beyoncé, pretos de Hollywood, cinema do Senegal. O que tem me surpreendido mais na produção brasileira é a galera pequena que corre por fora e faz coisa muito foda, tipo a Gleba do Pêssego, Brasilândia Co., é muito trampo massa.

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