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Dossiê Etnográficas: Judith Butler no Brasil

Notas sobre ‘Os Fins da Democracia’: etnografar protestos, manifestações e enfrentamentos políticos

Notes on “The end of democracy”: to carry on an ethnography of protests, manifestations and political confrontations
Isabela Oliveira Kalil

Texto integral

1Fazer pesquisa em um campo de protestos de rua é um desafio para qualquer antropóloga ou antropólogo. Ruídos, brigas, extintor de incêndio, entrevistas que não se finalizam, empurrões, correria, “inquisição” de figuras públicas, a presença da polícia, declarações de amor à pátria, cantorias, afobações e violências atravessam o campo. Manifestações públicas são uma das formas mais contundentes de expressar o que determinados grupos desejam e, no caso dos protestos contra e a favor da vinda da filósofa Judith Butler ao Brasil, organizado por diferentes coletivos, em 07 de novembro de 2017, não foi diferente.

2Convidada para participar do seminário promovido pelo SESC (Serviço Social do Comércio) “Os Fins da Democracia”, Butler discursou sobre a necessidade de se buscar diálogos, mecanismos e ferramentas para se criar possibilidades de convivência democrática em nossa sociedade. O evento foi parte do Seminário Internacional do Programa de Teoria Crítica da Universidade de Berkeley (Califórnia) e o Departamento de Filosofia da USP.

3Duas semanas antes da realização do evento, uma petição on-line no CitizenGo.org, site fundado na Espanha destinado a promover campanhas com pautas conservadoras, foi criada pedindo o cancelamento do evento no SESC argumentando que “ela [Judith Butler] propõe a desconstrução da identidade humana por meio da desconstrução da sexualidade e a difusão da ideologia de gênero nas escolas brasileiras” e que “por meio daquilo que chama de performance, propõe que as pessoas vivenciem todo tipo de experiência sexual”. Essa petição conseguiu o apoio de 372 mil assinaturas e conseguiu mobilizar uma série de grupos conservadores brasileiros sendo amplamente difundida em grupos no Whatsapp e Facebook.

4 O que se seguiu foi a criação de um evento no Facebook contrário a Butler. O evento “Ato de Repúdio à Maior Propagadora da Ideologia de Gênero: Judith Butler”, chegou a ter mais de 7 mil interessados e através de posts e vídeos compartilhados inúmeras vezes passou a divulgar dizeres como: “A educação sexual dos filhos pertence aos pais”, “homens venham de azul, mulheres de rosa”, “xô Judith Butler e sua ideologia nojenta”, “deixem nossas crianças em paz”. O objetivo das confirmações era atrair o maior número possível de pessoas para impedir que Butler participasse do evento. A estimativa de seus organizadores era de que dezenas de ônibus chegariam ao SESC naquela manhã para o protesto contrário. Nas vésperas do evento, não era possível ter a dimensão do que de fato ocorreria nos “Fins da Democracia”.

  • 1 Participaram da pesquisa Álex Kalil (UNIFESP), Amanda Gabriela Amparo (FESPSP), Celso Ricardo Buen (...)

5 Em resposta a esse evento de repúdio, grupos antifascistas e “progressistas” organizaram “contra-atos” para garantir a presença de Butler no SESC. Um dos eventos de resposta chamava para a criação de um cordão humano de isolamento e proteção para a filósofa. Mais de um evento foi criado e o propósito era de impedir que os “católicos e evangélicos contra a ideologia de gênero” pudessem impossibilitar que Butler fizesse sua fala, – embora este não fosse o principal objetivo dos grupos contrários que procuravam atrair visibilidade para uma pauta política específica. Somaram-se a esses grupos torcidas organizadas de futebol para oferecer apoio e corpos para o cordão de isolamento. Poucos dias antes, progressistas acusavam os conservadores de não terem lido as obras de Judith Butler. Conservadores faziam vídeos comentando um dos seus livros mais conhecidos, “Problemas de Gênero”. E eu preparava uma equipe de vinte pesquisadores (a maioria alunos do curso de Sociologia e Política) para ir a campo1.  

6O percurso que me levou a etnografar o enfrentamento entre esses grupos se inicia antes. Em 2011 eu havia participado de uma pesquisa nos Estados Unidos com o Occupy Wall Street no Zuccotti Park, enquanto fazia parte do doutorado na Universidade de Columbia, em Nova Iorque. No Brasil, acompanhei os protestos de 2013 com meus alunos, mas foi somente em 2016, de forma mais sistemática que passei a coordenar o NEU (Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual) como parte de um projeto coletivo de pesquisa com o tema Cidade e Democracia.

7Para resumir o percurso, a pesquisa sobre a Butler era um nó de uma rede de grupos e manifestações que começamos a seguir observando os protestos a favor do impeachment de Dilma Rousseff e a realização uma etnografia de três meses de pesquisa de campo no acampamento pró-impeachment da FIESP (Federação das Indústrias de São Paulo), na Avenida Paulista, no ano de 2016. Foi neste acampamento que vi pela primeira vez a queima de bonecos de figuras públicas no espaço público, no caso da FIESP eram as efígies de Lula e Dilma. A mesma estratégia dos bonecos foi usada para atrair visibilidade e espanto nas manifestações contra Butler.

  • 2 A pesquisa da FIESP foi realizada como parte do laboratório de escrita etnográfica do curso de Ant (...)

8Na FIESP, foi possível começar a mapear as rivalidades existentes entre diferentes grupos que genericamente são chamados de “direita” e que entre si se distinguem por serem “liberais”, “conservadores” ou “intervencionistas” – em referência a uma agenda de “intervenção militar temporária e constitucional”2. No trabalho de campo da FIESP menos do que observar o embate entre “direita” e “esquerda” observei disputas entre “direita” versus “extrema direita” em que grupos ultraconservadores formados em 2016 passaram a se organizar contra os grupos de direita formados em 2013. Do ponto de vista da observação das manifestações, protestos de rua, acampamentos e ocupações na cidade de São Paulo, 2013 é o que marca a origem de grupos como o MBL (Movimento Brasil Livre), VemPraRua e Revoltados Online. Mas 2016 marca o surgimento de novos grupos reivindicando para si o lugar de “conservadores”, “ultraconservadores”, “intervencionistas” ou mesmo “opressores”.

9Não apenas as pautas, mas os repertórios e os modos de ação na cidade são diversos na comparação entre os grupos mais conhecidos surgidos em 2013 e os novos de 2016. Os conservadores e intervencionistas ficaram menos centrados na pauta da corrupção, foram além e assumiram não apenas uma crítica a um pensamento de “esquerda”, mas uma pauta de ataque ao que consideram o “avanço do comunismo” no Brasil. Em alguns contextos, mesmo o que é identificado comummente como direita é classificado pelos conservadores como parte de forças comunistas. Assim, a própria definição da categoria “direita” está em disputa neste contexto. Enquanto os grupos de 2013 se afastaram das ruas, os coletivos formados em 2016 e 2017 passaram a articular ações no espaço público e nas redes digitais em eventos de menor escala com manifestações com um número reduzido de participantes e menor visibilidade.

10Ao acompanhar alguns conflitos nesta rede de manifestações e movimentos, grupos e coletivos chegamos ao evento contra Butler no SESC. O que havia de novidade era a possibilidade de que os grupos de “liberais” ligados ao MBL e os “conservadores” participassem juntos no mesmo protesto, fato que não se efetivou e o evento foi protagonizado pelos conservadores. Estávamos em outubro de 2017 em uma onda de ataques contra museus, exposições e instituições culturais públicas e privadas. No mês de setembro havia acontecido o cancelamento da exposição “Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” do Santander Cultural, em Porto Alegre, após acusações do MBL de que as obras faziam apologia à pedofilia. Duas semanas depois do caso de Porto Alegre, o MAM (Museu de Arte Moderna) de São Paulo também foi acusado de apologia à pedofilia pelo MBL por conta da performance "La Bête", apresentada na Mostra Panorama da Arte Brasileira. Em ambos casos, o Ministério Público foi acionado e o entendimento dos procuradores foi contrário às acusações.

  • 3 A instituição que nos acolheu para a reunião de preparação da pesquisa foi o Centro de Referência (...)
  • 4 Os resultados da pesquisa estão disponíveis no site www.neu.city e www.fespsp.org.br/neu

11Mas, enquanto os liberais se articularam principalmente nas redes digitais – caso do MBL, os conservadores e ultraconservadores foram para a rua ocupar o espaço público. Aliás, a questão não era apenas a vinda de Butler, mas a sua participação no SESC, que parte dos manifestantes entendiam ser uma instituição não privada, logo análoga ao ambiente da escola pública e passível de intervenção sobre questões educacionais. Foi neste clima de acusações de pedofilia, zoofilia, vilipêndio e linchamentos virtuais que estava marcada a atividade de preparação para o trabalho de campo3. Entre os que participaram de todas as etapas da pesquisa e os que participaram apenas da fase de preparação para o campo, estávamos em um grupo de quase trinta pessoas. Confirmados seríamos em torno de vinte em campo fazendo observação de campo, entrevistas abertas e um questionário estruturado com perguntas de múltipla escolha4.  

12Nesta fase, eram várias as questões metodológicas para o trabalho de campo, entre elas: Como preparar os alunos em sua primeira experiência etnográfica com a possibilidade de serem hostilizados em campo? Como fazer uma pesquisa em um contexto anti-diversidade de gêneros com uma equipe formada por estudantes não heterossexuais e militantes LGBTQ?  Como estar em campo em uma situação em que os corpos dos pesquisadores são identificados como não desejáveis por parte dos sujeitos de pesquisa? E por fim, como fazer etnografia em um protesto e contexto de violência e enfrentamento político? É preciso lembrar que o trabalho de campo foi marcado pelo enfrentamento entre torcidas organizadas antifascistas de um lado e grupos skinheads de outro, todos próximos ao estádio de futebol do Palmeiras.

  • 5 Um exemplo é o relato de campo da participação em uma carreata de apoio a Jair Bolsonaro, disponív (...)

13Algumas respostas para as questões metodológicas e de pesquisa foram encontradas em campo e outras permanecem em aberto. Após o evento, nossa equipe tem se dedicado a desenvolver pesquisas em alguns dos quase quinze diferentes grupos que estavam disputando a porta do SESC Pompeia naquela terça-feira. Continuamos acompanhando os mesmos atores sociais e grupos em protestos, manifestações, carreatas de “conservadores” e marchas “progressistas” - para usar termos imprecisos na ausência de definições melhores diante dos limites da dicotomia esquerda e direita neste contexto específico dos protestos de rua em São Paulo. O que temos observado são estratégias de engajamento de público, formas de visibilidade, ampliação de repertórios e pautas, tecnologias de protesto e a relação destes grupos com a cidade e o espaço público5.

  • 6 O videogame em sua versão beta foi programado por Marcos Salera e Stephanny Bevenuto com o roteiro (...)

14Os resultados desta pesquisa ainda carecem da publicação de um artigo de análise mais centrada nas reações em campo contrárias à chamada “ideologia de gênero”. Mas o que os relatos aqui apresentam é um conjunto de uma observação de campo coletiva com pesquisadores situados em diferentes lugares em campo e lados da contenda. Além dos relatos de campo, a forma de tornar visível e compreensível estas perspectivas e pontos de vista foi a produção de um videogame em forma de visual novel que procura recompor o trabalho de campo a partir do conjunto de contribuições da equipe de pesquisa6.

  • 7 Um primeiro esforço analítico sobre esta questão foi publicado no Nexo no artigo “Gênero, política (...)

15O que a pesquisa de campo revela é que “ideologia de gênero” é apenas o olho de um furacão que mobiliza uma complexa rede de significados, categorias, marcadores, operadores políticos e forças que estavam presentes nas manifestações em questão. Nesta rede, a categoria ideologia de gênero - em seus múltiplos significados a partir de diferentes grupos - é o elemento que mobiliza temas como família, Estado, educação, drogas, demarcação de terras indígenas, temas de segurança pública como prisão, redução da maioridade penal e porte de armas, saúde, alistamento militar, reforma da previdência, cálculo do tempo da aposentadoria de homens e mulheres, mercado de trabalho, intervenção militar, casamento, direitos humanos, adoção, aborto, polícia, militarismo, secularismo, sexualidade, comunismo, religião, antifascismo, futebol, infância e, não menos importante, o movimento Escola Sem Partido7. Todas estas pautas e questões estavam em disputa nas manifestações na porta do SESC Pompeia naquela manhã.

Imagem 1: protestos contra Butler, novembro de 2017. Autoria: Akira Guimarães

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Notas

1 Participaram da pesquisa Álex Kalil (UNIFESP), Amanda Gabriela Amparo (FESPSP), Celso Ricardo Bueno (FESPSP), Cristiane Gonçalves de Abreu (FESPSP), Ederson Duda (FESPSP), Felipe Daniel Paludetti (FESPSP), Gabriela Melo (FESPSP), Giovanna Priscila Nascimento (FESPSP), Isadora Jardim Salazar (FESPSP), Jacqueline Moraes Teixeira (PPGAS/USP), Karen Florindo (FESPSP), Lucas Akira Gonçalves (USP/PUC), Lucas Bulgarelli (PPGAS/USP), Marco Salera Castro(FESPSP), Marcos Peres (FESPSP), Paulo Eduardo Amorim (FESPSP), Rafael Costa (UNIFESP), Rafael Pinho(FESPSP), Stephanny Bevenuto(FESPSP), Suzana Lopes (FESPSP) e Tiago Oliveira (UFF). A supervisão de campo foi realizada por Álex Kalil e Felipe Daniel Paludetti e a supervisão de dados foi realizada por Cristiane Gonçalves de Abreu. Agradeço especialmente a Jacqueline Moraes Teixeira pela co-organização do dossiê e pela preparação de campo e a Lucas Bulgarelli por sua valiosa contribuição na preparação da pesquisa.

2 A pesquisa da FIESP foi realizada como parte do laboratório de escrita etnográfica do curso de Antropologia Urbana, ao longo de 2016, e deu origem a pesquisa Meu Partido é o Brasil: protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff.

3 A instituição que nos acolheu para a reunião de preparação da pesquisa foi o Centro de Referência da Diversidade, na República, e contou com a participação dos pesquisadores do PPGAS/USP Jacqueline Moraes Teixeira e Lucas Bulgarelli que gentilmente aceitaram o convite para trocar experiências e debater sobre as questões de se fazer campo no contexto que se apresentava.

4 Os resultados da pesquisa estão disponíveis no site www.neu.city e www.fespsp.org.br/neu

5 Um exemplo é o relato de campo da participação em uma carreata de apoio a Jair Bolsonaro, disponível em https://blogdaboitempo.com.br/2018/04/16/o-que-acontece-aos-sabados-na-politica-militarizacao-e-desmilitarizacao-da-vida-cotidiana/

6 O videogame em sua versão beta foi programado por Marcos Salera e Stephanny Bevenuto com o roteiro da equipe de pesquisa e está disponível para download em www.neu.city e www.fespsp.org.br/neu

7 Um primeiro esforço analítico sobre esta questão foi publicado no Nexo no artigo “Gênero, política e religião nos protestos contra Judith Butler”, disponível em https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2017/G%C3%AAnero-pol%C3%ADtica-e-religi%C3%A3o-nos-protestos-contra-Judith-Butler

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Índice das ilustrações

Legenda Imagem 1: protestos contra Butler, novembro de 2017. Autoria: Akira Guimarães
URL http://journals.openedition.org/pontourbe/docannexe/image/3933/img-1.jpg
Ficheiro image/jpeg, 268k
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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Isabela Oliveira Kalil, «Notas sobre ‘Os Fins da Democracia’: etnografar protestos, manifestações e enfrentamentos políticos»Ponto Urbe [Online], 22 | 2018, posto online no dia 15 agosto 2018, consultado o 28 março 2024. URL: http://journals.openedition.org/pontourbe/3933; DOI: https://doi.org/10.4000/pontourbe.3933

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Autor

Isabela Oliveira Kalil

Doutora em Antropologia Social pela USP. Docente do curso de Sociologia e Política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde coordena o NEU (Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual). Tem desenvolvido pesquisas sobre enfrentamentos políticos e controvérsias no espaço urbano em manifestações, protestos e eventos na cidade de São Paulo.

E-mail: oliveira.isabela@gmail.com

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