No plural: novo perfil das famílias redesenha o padrão brasileiro

Recentes transformações sociais deram mais visibilidade e reconhecimento para as novas configurações das famílias no país

Célia Fernanda Lima Eduarda Ramos Publicado em 10.05.2023
Foto de uma mulher e uma menina que se abraçam e se olham
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Resumo

Maternidade depois dos 40, casamentos homoafetivos e mulheres pretas como maioria das mães solo são as principais transformações no perfil das famílias do país nas últimas décadas. O Lunetas ouviu histórias para mostrar a pluralidade das novas famílias brasileiras.

O perfil das famílias brasileiras está em transformação. Nas últimas décadas, o tal “padrão” passou a ser questionado à medida que famílias mais plurais vêm ganhando espaço. O número de mulheres que se tornaram mães depois dos 40 anos dobrou, o casamento entre pessoas do mesmo sexo quadruplicou, as taxas de natalidade caíram e a constatação de que a maioria das famílias é chefiada por mães solo pretas e da periferia são alguns dos fatores que compõem a diversidade das famílias no país.

Segundo o dicionário Michaelis, o primeiro significado da palavra “família” é “conjunto de pessoas, em geral ligadas por laços de parentesco, que vivem sob o mesmo teto”. Mas nem mesmo o nome oficial do Dia Internacional da Família, instituído pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1993, e celebrado em 15 de maio, imprime o plural capaz de representar as famílias modernas.

Para marcar esse posicionamento, o Brasil afirmou, no Conselho de Direitos Humanos da ONU, que as políticas públicas nacionais são voltadas para todas as famílias, sem discriminação, e rejeitou a recomendação de outros países que defendem o conceito de “família tradicional”. Para saber como essas transformações atravessam as vivências das crianças, o Lunetas ouviu pais e mães que reforçam a pluralidade com suas histórias particulares em lugares diferentes do Brasil.

Maternidade após os 40 anos

“Eu não tinha planos de ter filhos, mas meu ex-marido queria. Não tivemos um planejamento prévio sobre isso, foi inesperado”, conta Marieta Crispim, 66, que engravidou de Denise aos 42 anos. Quando seu ginecologista soube da gravidez, a primeira reação foi dizer que era “uma gravidez de alto risco, por conta da idade, e que minha filha poderia vir com má formação ou alguma deficiência física ou mental”, diz. Crispim deu à luz a um bebê saudável.

Na idade escolar, embora não fosse uma questão para mãe e filha, Crispim percebia que os colegas de Denise que não tinham pais presentes ficavam tristes no dia das mães e dos pais. “A escola que ela estudou era católica e todo ano tinha uma missa em homenagem aos pais e às mães. Até a quinta série, eles também entregavam presentes para os pais, um desenho ou uma pintura que os próprios alunos faziam”, relata a mãe.

“É chato quando a criança não tem um dos pais presente e aí a data acaba ficando ‘vazia’”

O avanço dos direitos sociais das mulheres, conquistado a partir de maior escolarização, crescente participação no mercado de trabalho e a liberdade sexual, por exemplo, favorece a possibilidade de ter filhos depois dos 40. De acordo com a cientista social e professora do departamento de demografia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas (Unicamp), Joice Vieira, com mais educação, o cenário cultural e econômico também mudou, pois, como as pessoas se dedicam mais ao trabalho e a qualificações, sobra menos tempo para constituir família. “Ter filhos está deixando de ser uma experiência obrigatória, já que a independência financeira e a autorrealização são esperadas primeiro”, pontua.

Vieira destaca que parte da população feminina acima dos 40 anos opta pela maternidade via reprodução assistida, sinal de que cada vez mais as mulheres se apropriam de suas próprias histórias. É o caso de Ana Cláudia Carvalho, comunicóloga e mãe das gêmeas Marcela e Giovana, 4. “Eu sempre sonhei em ser mãe e, por ser solteira, decidi que esperaria até os 40 anos. Tentei uma fertilização in vitro com os meus óvulos e implantei dois embriões. Deu certo de primeira”, conta.

Ela completou 40 anos um mês antes do nascimento das gêmeas. Desde então, nunca foi questionada negativamente sobre a maternidade tardia e solo. O que chega a ela são perguntas de outras mulheres que se identificam com o desejo de ser mãe mas que têm medo de tentar uma produção independente. “Acredito que as mulheres podem ser o que elas quiserem e quando elas quiserem. As dificuldades estão presentes, mas cada uma escolhe a melhor maneira de viver bem”, pontua.

Dois pais, duas mães

Quando se discute a evolução das famílias, pautas ideológicas e até ligadas a religiões costumam ser levantadas. Mas, no processo de formação e desenvolvimento da criança, o que mais deve pesar são os direitos sociais garantidos e a confirmação de que cada família é única, sem precisar seguir um padrão.

O casamento entre pessoas do mesmo sexo é considerado um fenômeno recente no Brasil e vai crescer ainda mais, como explica a cientista social. “Certamente há uma tendência de que esses casais busquem formalizar a união pela visibilidade social e garantia de direitos”, diz Vieira. Mesmo ainda sendo menos de 1% das uniões civis registradas pelo IBGE, o número de casamentos homoafetivos no país aumentou consideravelmente em 10 anos. Foram 3,7 mil casamentos em 2013 e no ano passado o número saltou para 11.945, segundo o relatório “Cartório em números”. Até o mês de abril deste ano, já foram mais de 76 mil casamentos celebrados, de acordo com a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais. 

O enfermeiro Marcelo Mendes, que já ajudava a criar as suas sobrinhas, sempre sonhou em ser pai. Após o casamento com o arquiteto Rogério Silvestre, o desejo da paternidade se tornou algo em comum e foi concretizado por meio de um processo de adoção legal. Hoje, ele e o marido são pais de Enrico, 4, e Duda, 1.

A escola de Enrico comemora tanto o dia dos pais quanto o dia das mães, mas ele relata que são receptivos ao fato de seu filho pertencer a uma família homoafetiva. “Nesses dias eles falam sobre a família e a pessoa que representa o cuidador da criança, seja avô, avó, tio, madrinha, dois pais, duas mães. O Enrico entrega o presente pros dois pais no dia das mães e no dia dos pais também”, conta.

Apesar da existência dos dias temáticos não ser um problema para algumas crianças, como Enrico, a substituição pelo Dia da Família em algumas escolas é uma prática que reflete como diversas famílias têm ocupado mais espaços sociais. Segundo Vieira, isso permite o tratamento natural da diversidade, principalmente entre as crianças. Ela explica que é mais fácil dar possibilidades para refletirem sobre as pessoas que convivem em seu dia a dia do que definirem seu ciclo familiar pela ausência de alguma figura. “Sujeitos em formação precisam de pessoas de referência. Podem ser os pais biológicos, adotivos, avós ou outras pessoas que cumpram este papel. O que não pode acontecer é não ter referência alguma e supervisão insuficiente”, ressalta.

Quando Enrico é perguntado sobre a ausência da mãe pelos coleguinhas, Mendes explica que o filho é enfático em responder que “é porque ele tem dois papais e fim, mesmo sendo muito claro que ele nasceu da barriga de uma mulher”. E quando Enrico perguntou ao seu marido se ele tinha saído da barriga dele, a resposta não poderia ser outra: “ele respondeu que o Enrico nasceu do coração do papai, e que isso é maravilhoso”.

“Minha família é tradicional, porque ela é sustentada e alicerçada cotidianamente por amor”

Família “tradicional” é preta e chefiada por mães solo

Das mães solo que chefiam famílias, seis em cada dez são mulheres pretas e de baixa renda. A histórica estrutura escravocrata leva a uma repetição deste modelo, que, segundo Vieira, será superado a partir de uma mudança de mentalidade. “A maioria dessas mulheres fica sozinha com seus filhos por causa do abandono dos pais, e não por uma opção delas. Por isso, é necessário trabalhar desde cedo com os meninos a paternidade como um valor e educá-los para a máxima de que homens e mulheres são igualmente responsáveis pelos filhos que geram”.

Em 2022, 165.051 crianças não tiveram o nome do pai registrado em suas certidões de nascimento. Estima-se que o Brasil, em 2018, possuía mais de 11 milhões de mães solo. Magali Dantas, técnica judiciária do Rio Grande do Sul, foi mãe após os 40 e o marido mora em outra cidade. A gravidez de Raphael, 9, aconteceu de maneira não planejada. “Aos 44 anos, adotei a ideia de ser mãe sem saber se meu companheiro estava a fim de engajar nesse projeto. Considerei que engravidar espontaneamente foi como ganhar na loteria. Ele decidiu que também seria pai e que formaríamos uma família”, diz.

Dantas comenta que a maternidade não era um desejo forte por motivos socioeconômicos. “Sou uma mulher negra, periférica e desde muito cedo fui estimulada a estudar e procurar cumprir alguns ritos para poder me realizar profissionalmente e intelectualmente. Não é que eu não queria ter filhos, mas não encontrava espaço para isso na minha vida”, reflete. Após o nascimento de Raphael, ela destaca que conheceu “emoções e sentimentos que jamais teria conhecido se não tivesse sido mãe”.

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Arquivo pessoal

Rogério e Marcelo, de Belém (PA), acompanhados dos filhos Duda, 1, e Enrico, 4, em uma festa de aniversário

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Arquivo pessoal

Ana Cláudia Carvalho, de Manaus (AM), sempre quis ser mãe e decidiu por uma produção independente. As filhas, Marcela e Giovana, 4, nasceram um mês depois dela completar 40 anos

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Arquivo pessoal

Magali Dantas, de Porto Alegre (RS), acompanhada do filho Raphael, 9, em uma viagem

“Sou muito realizada com a maternidade, apesar de reconhecer que é uma experiência particular, diferente para cada mulher”

Crianças podem levar adiante a conquista de famílias mais plurais

A psicóloga Tainá Valente, pesquisadora de temáticas sobre raça, gênero e psicologia preta, lembra que o desenvolvimento de uma criança é responsabilidade coletiva e que, nas tradições africanas, as crianças representam “a continuidade não só da sua família, mas da sociedade com seus valores e tradições” e que serão responsáveis por seguir imprimindo pluralidade e ocupando mais espaços, deixando para trás polêmicas antigas sobre uma o que seria a tradicional família brasileira. A cientista social, Joice Vieira, recomenda avançar os debates para garantir serviços de cuidado para crianças que não estejam restritos à figura feminina, pois essa atribuição era exclusiva das mulheres e hoje elas desempenham outros papéis sociais.

“É indispensável que haja mais creches e escolas em tempo integral, e, principalmente, a divisão igualitária de tarefas de cuidado”.

Enquanto Vieira opina duas hipóteses sobre o futuro das novas famílias apostando no aumento expressivo de mulheres que não terão filhos porque assumem que não dariam conta e passam a priorizar outras dimensões de suas vidas; ou mais homens envolvidos de maneira permanente com as tarefas de cuidado, Valente reforça que outros modos de maternar e paternar não excluem o principal componente familiar que é “o amor, a afetividade e a construção de um espaço seguro para a criança desenvolver suas potencialidades de forma saudável, tendo o suporte necessário para atravessar todas etapas”.

“Só em ambientes preparados para receber famílias diversas, as crianças poderão se desenvolver e ter a chance de ser o legado de suas famílias”

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