Parem de romantizar a violência do sistema escravista

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Parem de romantizar a violência do sistema escravista

Por Débora Simões

No último sábado, dia 11 de setembro, a Companhia das Letras ­­­­− importante grupo editorial brasileiro com mais de 30 anos de atuação no mercado − publicou em suas redes sociais um pedido de desculpas e anunciou a retirada de circulação do livro infantil Abecê da liberdade. A proposta da obra é contar a trajetória do abolicionista negro Luiz Gama. O texto e a ilustração que foram alvo de críticas mostram Gama ainda criança brincando no navio negreiro. “​​​​​​​​Eu, a Getulina e as outras crianças estávamos tristes no começo, mas depois fomos conversando, daí passamos a brincar de pega-pega, esconde-esconde, escravos de Jó (o que era engraçado, porque nós éramos escravos de verdade), e até pulamos corda, ou melhor, corrente”. Preciso admitir que só de imaginar crianças negras lendo esse livro me dá um nó da garganta. Uma dor na alma. Ao mesmo tempo que o meu corpo dá sinal de revolta, lembro-me da frase: “O racismo é uma ferida que ainda sangra”, da escritora e artista Grada Kilomba

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Como se pareciam, de fato, os navios negreiros. Foto: Infoescola.

Cresci na década de noventa, num lar com poucos livros, meu imaginário de pessoa negra foi construído por meio dos livros didáticos. Lembro-me das gravuras clássicas dos negros escravizados, amarrados uns aos outros. Achava estranho porque aquelas pessoas tinham a mesma pele que eu, que minha mãe, minha avó, meus irmãos, meus tios, aqueles de quem de algum modo eu era parte e eles de mim. Nasci negra, mas desconhecia. Eu não sabia quem eu era. Fui descobrir (e minhas percepções nunca mais foram as mesmas) muitos anos depois, porém isso já é um assunto para outro texto.

O mercado editoral já não é o mesmo dos anos noventa, a própria historiografia sobre a escravidão também não. Há mais obras literárias infantojuvenis com diversidade racial. E também por isso, diante das transformações (que, não podemos esquecer, foram conquistadas pelo Movimento Negro), o livro que conta com texto de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta e foi ilustrado por Edu Oliveira, deve ser criticado.

Vamos pensar juntos sobre a violência do sistema escravista que vigorou na Idade Moderna. Os navios negreiros, também chamados de “tumbeiros”, superlotados com africanos, fizeram inúmeras viagens transatlânticas. Foram aproximadamente 11 milhões de africanos escravizados. O Brasil tem um destaque vergonhoso nesse sistema, foi o país que mais importou mão de obra escrava, cerca de 5 milhões. Quase sozinha nossa nação (antes mesmo de ser uma, viramos independentes em 1822) era responsável por quase metade de todo o comércio de africanos. Dos escravizados trazidos para o Brasil, cerca de 1 milhão morreram antes de chegarem aos portos. Guardamos outro título lamentável: fomos a última nação americana a abolir a escravidão. A maioria dos números aqui apresentados está disponível no site Slave Voyages.

Na condição de escravizados, os negros foram desumanizados. Com pouca água, comida escassa, calor excessivo, castigos físicos e mentais, proliferação de doenças, rebeliões, muitos africanos não chegavam vivos ao fim de viagem que durava em torno de 2 meses. No século XIX o tempo da travessia atlântica diminuiu quase pela metade por causa das novas tecnologias de transporte, mas a taxa de mortalidade continuou elevada, pois muitas pessoas que eram trazidas pelos navios eram lançadas ao mar, já que o comércio de escravos tinha se tornado ilegal com a Lei Eusébio de Queirós (em 1850), e os traficantes de pessoas precisavam, portanto, evitar que seus navios fossem apreendidos com pessoas escravizadas. Cerca de 12% a 13% das pessoas embarcadas não sobreviveram à viagem. Aqueles que morriam não eram retirados imediatamente do navio, os corpos começavam a se decompor, juntando-se a outros odores, de fezes, urina e sangue.

A sociedade que defendeu (alguns ainda defendem) o mito da democracia racial, o paraíso das raças onde brancos, negros e indígenas vivem cordialmente vê, hoje, escritores brancos tratarem essa desumanização violenta de forma lúdica. Mostram uma criança negra que supostamente diante de todos os horrores aqui descritos esquece de sua condição e dos seus pares e num toque de mágica começa a brincar se reunindo com outras crianças felizes

Convido você, logo quando terminar aqui, a iniciar uma nova leitura. Dessa vez a emocionante e dolorosa narrativa de uma criança africana escravizada na viagem para o Brasil, presente no livro Um defeito de cor de Ana Maria Gonçalves. 

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