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Por Eduardo Graça e Elisa Martins — São Paulo

As mochilas ficam ao lado, no chão, enquanto a família recém-chegada dá entrada nos papéis para o alojamento. Mateus, a irmã Bibiana, e os dois filhos dela acabaram de chegar a São Paulo. São de Luanda, Angola, nacionalidade predominante hoje entre os estrangeiros abrigados em serviços públicos ou religiosos da capital paulista. Na Missão Paz, instituição religiosa scalabriniana, da Igreja Católica, de acolhimento a imigrantes e refugiados no Centro da capital paulista, os angolanos somam quase metade dos acolhidos atualmente.

— Lá não tem trabalho. E quem sai e depois volta não se sente mais em casa —afirma Bibiana, que prefere não citar o sobrenome por temer pela segurança dos outros filhos, que permanecem em Angola.

Xenofobia em casa

Antes de vir ao Brasil, a família se refugiou no Congo, fugindo dos conflitos internos que se arrastaram em Angola desde a independência do país de Portugal, em 1975. Ao retornarem a Angola, não reconheceram mais o antigo lar. Contam que sofreram xenofobia dos próprios angolanos, que usavam termos pejorativos para se referirem aos compatriotas que buscaram abrigo no Congo.

— As crianças sofriam muito, eram xingadas, apanhavam na escola — conta Bibiana, com a voz pausada e cansada, enquanto carrega uma pequena bolsa com itens de higiene pessoal no colo, e os filhos caçulas, de 12 e 10 anos, correm no jardim interno com outras crianças igualmente acolhidas com suas famílias na nova casa.

O fluxo de angolanos ao Brasil é antigo e constante: existe desde o século XVI, com o tráfico de pessoas escravizadas, ou seja, são, também, atores da própria formação do que viria a ser o povo brasileiro.

Bibiana conta que sofreu xenofobia dos próprios angolanos por ter buscado abrigo no Congo durante conflitos em seu país. — Foto: Maria Isabel Oliveira/O Globo
Bibiana conta que sofreu xenofobia dos próprios angolanos por ter buscado abrigo no Congo durante conflitos em seu país. — Foto: Maria Isabel Oliveira/O Globo

Depois, acentuou-se nos anos 1970 e 1980, com os refugiados da guerra civil entre a comunista MPLA e a direitista Unita, que só terminou em 2002. Suas feridas, no entanto, seguem abertas. A nova onda, de acordo com o depoimento dos angolanos que conversaram com O GLOBO, foi acelerada pela piora nos índices sociais e econômicos do país e o apertado pleito presidencial do ano passado, com a reeleição de João Lourenço, do MPLA, partido que governa o país ininterruptamente há 49 anos.

— A vida ficou muito mais difícil, não há como conseguir dinheiro lá — conta Lama Josefina Bibiana, a Bibi, mãe de seis filhos e avó de dois netos.

Apenas a filha mais nova de Bibi, de 6 anos, veio com ela, há dez meses, em busca da nova vida em São Paulo. Elas moram em uma casa simples perto da Missão Paz, onde Bibi conseguiu emprego na área de limpeza. As maiores vantagens do Brasil, diz de bate-pronto, são a rapidez para se tirar documentação (“em Angola tudo custa e é preciso conhecer alguém para as coisas andarem”) e a liberdade (“ninguém nos incomoda aqui”). Mas ela também já sofre com a saudade dos parentes que seguem do outro lado do Atlântico. E, revela entre um e outro sorriso, a falta do calulu, um cozido feito com peixe seco e fresco e vários vegetais:

— Estamos bem, não sei como agradecer tudo que já fizeram por nós. Mas às vezes estou com minha menina e me pego pensando na família. A ideia é trazer (os demais). Está tudo nas mãos de Deus.

Redes de apoio

Bibi, assim como muitos angolanos recém-chegados, elegem o Brasil como destino amparados nos relatos de amigos e familiares que já fizeram o mesmo caminho. Novelas e programas de televisão daqui transmitidos em Angola completam o imaginário. O Brasil é, repetem, “terra das oportunidades”, um lugar onde também se fala português, mas com educação e saúde públicas e universais, e programas sociais reconhecidos, como o Bolsa Família.

Essa conexão com angolanos que já conhecem o Brasil ajuda a explicar por que os recém-chegados não se acumulam à espera de abrigos, caso dos afegãos no aeroporto de Guarulhos, recentemente, ou os venezuelanos na fronteira norte.

— Os angolanos já têm canais estabelecidos aqui. São amigos, conhecidos, parentes, que ajudam na chegada — conta a assistente social Monica Quenca, da Missão Paz.

Foi assim com a angolana I.L., de 32 anos, que prefere o anonimato. Um amigo conhecia outros angolanos que moram no Brasil e organizou que um deles fosse buscá-la no aeroporto. I.L. ficou três dias em um hotel no Centro e depois foi para uma ocupação no mesmo bairro, onde já viviam outros angolanos. Paga R$ 350 por mês e está à procura de um novo trabalho, após três meses de experiência em uma empresa de limpeza que presta serviços ao Hospital Albert Einstein. O contrato foi encerrado esta semana.

— Os angolanos têm muita coragem. Cheguei sozinha, mas ando com Deus. Sei que vou conseguir [outro trabalho] — conta.

O mais difícil, diz, é a saudade dos dois filhos, de 10 e 14 anos, que ficaram com a avó em Luanda:

— Mando dinheiro sempre que posso. Foi melhor ter saído do que ficar e sofrer sem trabalho. Vou trazê-los um dia. Lá não tem mais nada para mim.

No ano passado, os angolanos responderam por apenas 6,78% das solicitações oficiais de refúgio no Brasil, segundo dados do Observatório das Migrações Internacionais, ligado ao Ministério da Justiça. A demógrafa Sofia Furtado, autora de “Migrações angolanas”, livro da Editora Unicamp a partir de sua dissertação de mestrado sobre o tema, pontua que desde o fim da Guerra Civil Angolana o governo brasileiro tem sido mais rigoroso com os pedidos:

— Em 2018, dos 409 pedidos de angolanos, apenas 20 foram aceitos. O que não está diretamente ligado ao aumento de angolanos chegando ao país. Nos primeiros quatro meses deste ano, por vias oficiais, foram 365 pessoas, quase o mesmo que todo o ano de 2020, com 474 cidadãos — explica a especialista.

Aumento expressivo

Os números não registrados na Imigração, no entanto, são muito mais robustos. Dos 2 mil imigrantes acolhidos hoje nos serviços da rede socioassistencial da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, pouco mais da metade (1.006) são angolanos. É cinco vezes o número da segunda nacionalidade mais atendida, os venezuelanos.

— Creio que entre os fatores centrais para o atual fluxo da migração angolana estão a turbulência política após as eleições, com a eclosão de greves e o caos na Educação, com universitários sem aulas desde janeiro, e a desesperança com a estrutura social local. No Brasil, eles sabem que as crianças não terão qualquer empecilho legal para cursarem o ensino básico e poderão ser atendidos pelo SUS — diz Sofia Furtado.

O que, a especialista frisa, não deve alimentar nenhum sentimento nativista. Além do já pujante protagonismo cultural em São Paulo (das mulheres tranceiras da Galeria do Rock a pintores como Paulo Chavonga e um sem número de poetas e músicos), a maioria dos imigrantes angolanos tem entre 25 e 40 anos e vem de uma economia com informalidade, em 2022, de 80%. E, por conta também das redes migratórias passadas, tendem a se espalhar pelo país. A “tendência de dispersão”, conta Sofia Furtado, já inclui Paraná, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Bahia. A maior parte dos novos imigrantes, no entanto, segue em São Paulo.

No Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes Oriana Jara, da prefeitura, os angolanos também são maioria nos atendimentos. O centro oferece orientação para regularização migratória, acesso a serviços públicos de Assistência Social, Saúde e Educação, além de atendimento psicológico e orientação jurídica. De janeiro a 25 de abril, foram realizados 231 atendimentos a imigrantes angolanos, maioria nos atendimentos do ano passado.

‘Quero fazer a vida aqui’

Miguel Kialunda, 35 anos, chegou há um mês com a mulher, grávida de quatro meses de um menino. Ficaram três dias em um hotel, não puderam pagar mais, e acudiram aos serviços públicos. Estão há algumas semanas em um hotel oferecido pela prefeitura, no Centro da cidade, onde também se alojam outros amigos do casal. A saudade da família que ficou do outro lado do Atlântico mareja os olhos, mas Kialunda se concentra no futuro.

Miguel Kialunda, imigrante angolano em São Paulo, diz que pretende fazer a vida no Brasil. — Foto: Maria Isabel Oliveira/O Globo
Miguel Kialunda, imigrante angolano em São Paulo, diz que pretende fazer a vida no Brasil. — Foto: Maria Isabel Oliveira/O Globo

— Quero fazer a vida aqui. Quando começar a trabalhar, as coisas vão mudar — conta.

No dia em que conversou com O GLOBO, ele aguardava a resposta de uma entrevista para trabalhar no serviço de carga e descarga de uma empresa multinacional. Só faltava o telefone tocar.

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