Corpos Esquartejados pelo Desejo (O Ornitólogo)

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por Alex França

“Tem coisas que não valem a pena entender”. Essa é uma das frases emblemáticas de O ornitólogo (2016), de João Pedro Rodrigues, porque revela muito do que a narrativa vai se configurando no seu decorrer. O mais recente filme do diretor português retrata a viagem do personagem Fernando por uma belíssima região de Portugal, por conta de sua paixão e pesquisa pelas aves.

Nos primeiros minutos do filme, é esse ambiente e contexto com o qual o espectador se depara, até o momento em que Fernando, enquanto conduzia um caiaque, defronta-se com uma forte correnteza no rio, distraído enquanto observa as aves, cai e desaparece na água. Após o encontro com duas chinesas assumidamente cristãs e lésbicas, uma série de situações aparentemente inusitadas começam a ocorrer, causando uma grande transformação na vida de Fernando, a ponto de ele abandonar objetos e documentos, queimar os dedos para apagar suas digitais, jogar fora o aparelho celular que o conectava com o mundo exterior àquele e ao seu companheiro, Sergio, que aparece no filme apenas por mensagens de celular.

Um aspecto que chama muita atenção em O ornitólogo é a presença do erotismo, algo já recorrente nos filmes de João Pedro Rodrigues. O diferencial, entretanto, nessa narrativa, em comparação com sua obra anterior, que inclui, por exemplo, O fantasma, Odete e Morrer como um homem, é a relação do erotismo com símbolos e narrativas cristãs. Ao longo do filme, uma série de referências cristãs aparecem, como a oração do Pai Nosso, rezada pelas duas chinesas, Fei e Lin, o terço, imagens de anjos, nomes de santos, como a constante menção a Santo Antônio e sua relação com os animais, o sangue (encarnado e consumido pelo homem e pelo animal), e a principal, o personagem Jesus, um jovem pastor de ovelhas, surdo, que se envolve sexualmente com Fernando. Há outras menções associadas à espiritualidade, não necessariamente cristã, como os espíritos da floresta (Tengu), que causavam medo nas duas chinesas, assim como a própria descrença de Fernando, que alega não acreditar nem em Deus nem no Diabo.

A trama faz constamente essa associação entre o espiritual e o erotismo: a começar pelo nome de uma das regiões em que o personagem identifica algumas aves: Picão do Diabo. Em outro momento, Fernando encontra-se amarrado, apenas de cueca branca e com o pênis ereto, por duas mulheres cristãs que se dirigem a Santiago de Compostela. Em outra cena, mulheres com os dorsos desnudos, montadas em cavalos e falando em latim, fazem insinuações íntimas a Fernando (nomeado por elas como Antônio).

O erotismo no filme configura-se principalmente através da figura masculina. Os corpos masculinos são expostos sem qualquer pudor, em diversos ângulos. Alguns cortes focam em partes dos corpos dos homens, em especial do corpo de Fernando, que conduzem os olhares e possíveis desejos dos espectadores. Nesse caso também, a simbologia que predomina está marcada pelo falo. Diversas cenas em que o pênis aparece ereto ou não, ou são ilustrados de outras formas, como no ritual de homens fantasiados, que bebem e dançam com tochas na mão e varas de pau com duas bolas, uma espécie de renovação da masculinidade (através da força e da virilidade), já que eles repetem constantemente a frase: “Não há quem nos encare”; ou em outra cena, uma parte do caiaque de Fernando, com a ponta para cima cercado por várias bolas.

Uma espécie de disputa de gêneros e sexualidades também é travada em Ornitólogo. A começar pela relação de desejo e embate entre Fernando e as turistas chinesas. Ao mesmo tempo em que as personagens Fei e Lin declaram amor a Fernando, elas também planejam castrá-lo. Em outra cena, as três amazonas na floresta, armadas de espingardas enquanto caçavam veados, uma delas acaba atingindo Fernando com um tiro, situação aqui interpretada como uma caça a gays. As mesmas personagens, após essa cena, oferecem ajuda ao personagem e fazem, de forma insinuada, convites para que ele as acompanhasse.

Essa forma erotizada de abordar o universo espiritual e religioso (entre outros aspectos, como determinados planos, trilha sonora, etc.) insere o filme em um espaço de grande importância para a cinematografia portuguesa contemporânea, que vem ganhando um novo respiro através do trabalho de João Pedro Rodrigues.

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