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Urticárias

 

Urticária é uma palavra derivada de Urtiga que, surpreendentemente, é uma das plantas mais sagradas e de grande utilização medicinal. A urtiga é capaz até de salvar o mundo, porém, causa urticária.

E este é o ponto interessante desta história.

A urtiga selvagem e livre – que detém poderes medicinais, tais como antirreumático, antisséptico, bactericida, adstringente, diurético-depurativo e estimulante do sistema circulatório, entre outras – causa ardor e comichão nas nossas peles assépticas, sensíveis e finas, cobertas de cremes, químicos e muito lavadinhas.
A cada toque de urtiga as nossas peles ficam ofendidas, vermelhas e quentes. No fim de contas, lembram-se que estão vivas.

Precisamos ser mais picadas por urtigas

Precisamos de conhecer melhor as nossas urticárias, o que nos aflige e ataca, o que nos ofende e onde nos sentimos vulneráveis. Só assim podemos mergulhar no profundo e amplo selvagem.

Qual a relação das urtigas com a revista Vento e Água?

Inicialmente, quando foi lançada em Outubro de 2017, a revista foi denominada Feng Shui Lifestyle. Esta publicação foi criada segundo o contexto da época, ainda demasiado dentro de casa (e da mente), numa denominação bastante condizente com a pele moderna, suave e hidratada, protegida do sol, da chuva e da terra. Inadvertidamente, esta denominação “feng-shui”, criou barreiras de proteção esterilizadas e estéreis, confortáveis para a nossa pele ocidental, mas limitadas no que poderíamos trazer enquanto revista. Pois a vida ocorre no que é selvagem, indomável e indominável. Como a urtiga.

Sob esta designação observamos a revista a seguir um caminho dogmático (de métodos e dicas), fechado e quadrado, ortogonal e sempre arrumadamente simétrico. E este é o tipo de narrativa que nos separa do selvagem, ditando contextos exclusivamente controlados. Mas a realidade é complexa e nunca há só uma forma ou um lado. Assim tornou-se urgente e vital a dissociação da revista do termo e conceito de feng shui.

O paradoxo é que, após este divórcio, aconteceu uma real aproximação à essência prática deste conceito oriental: a capacidade e possibilidade de observação e integração com a natureza, nas suas múltiplas camadas. Nunca do ponto de vista superior, mas de diálogo recíproco. Nunca da sua utilização em benefício próprio, mas de relação. Esta visão eurocentrada das casas individuais, reforça a nossa capacidade de sermos egoístas, alheios, alienados e profundamente desligados. Ao nos aprisionarmos à exigência da esterilidade das nossas casas, não temos espaço para compreender os diálogos vitais que precisamos de ter. Este é um posicionamento preguiçoso e perigoso, um antropocentrismo decadente que abandona e exila a matriz regeneradora da vida.

Divorciámo-nos também intencionalmente do termo “lifestyle”, em tradução directa estilo de vida. Um termo altamente binário que impõe uma visão do certo e do errado, definindo que o que vai contra algo pré-estabelecido é errado. Vendendo uma imagem irreal e fabricada do que é uma vida. Perpetuando dogmas hermeticamente dissociadores e desastrosos. Uma ditadura que começa na forma de vivenciarmos os nossos espaços muitas vezes sem sentir, estar, ouvir ou compreender a terra onde pisamos.

Ao compreender que a Terra, planeta, não foi feita para nós, mas nós para o planeta, mudamos o nosso lugar na cadeia. A nossa compreensão sobre o movimento das casas, lugares, sítios, seres vivos e não vivos, muda. Tornamo-nos iguais e perdemos a segurança da altivez de sermos especiais. Somos apenas seres integrantes num ritmo muito maior, fazemos parte de algo que não está acima de nós, mas sim, à nossa volta e do qual não somos capazes de nos separar. Seguimos as linhas do animismo e do pós-activismo.

Queremos ser picados por urtigas!

Por Maria Trincão Maia & Sofia Batalha

 

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