Jornalista e escritor chileno especializado em vinhos, Patricio Tapia (Pato para os amigos) criou e edita há 25 anos a mais influente publicação do setor na América do Sul, o Guia Descorchados. A edição 2023 foi lançada em São Paulo na terça-feira (11) em um evento que reuniu 108 produtores para apresentar seus vinhos a 1,5 mil potenciais consumidores. Para chegar às mais de 5 mil avaliações da edição 2023, Tapia visitou 230 vinícolas argentinas, 223 chilenas, 35 uruguais e 35 brasileiras. Pelo primeira vez, percorreu também Peru e Bolívia. Publicado no Brasil pela Inner Editora, o guia está à venda por R$ 295 no site Adega Online. Tapia falou à DINHEIRO na sede paulista da Associação Brasileira de Sommeliers (ABS-SP) sobre como trabalha, o que mais admira no Brasil e por que seus comentários nem sempre são bem interepretados.

Qual foi sua maior motivação ao criar o Guia Descorchados, há 25 anos?
Naquela época eu estudava enologia em Bordeau, na França, e me dei conta de que não havia, no Chile, um guia com avaliações subjetivas de vinhos. O que havia eram médias obtidas a partir das opiniões e notas de um grupo grande de degustadores, sem opiniões pessoais. Criei o guia para expressar a minha opinião sobre cada rótulo, pois o vinho é sempre uma questão pessoal.

Por que escolheu para isso o formato de um guia?
Mais que um guia, sempre encarei o Descochardos como um trabalho jornalístico. Antes de enólogo sou jornalista, e o que me moveu foi a ideia de fazer uma grande reportagem, anual, sobre a produção de vinhos. Eu me dediquei seis meses para a primeira edição. Comecei pelo Chile, depois expandi para outros países sul-americanos.

Poderia imaginar, naquela época, que o guia completaria 25 edições?
Sim. Sou otimista e desde o início pensava em dar continuidade ano a ano. Houve um momento em que foi mais difícil, pois eu já não vivia no Chile e visitar os produtores era muito trabalhoso. Mas àquela altura ele já havia se tornado influente e decidi seguir em frente mesmo assim. Há 15 anos ele me permite viver bem.

A cada ano você consegue introduzir para o mercado consumidor produtores que não estavam em evidência. Como é feita essa garimpagem?
Temos um método muito especial e que é exclusivo nosso. São basicamente duas etapas. Na primeira eu me reúno com cada produtor e faço uma entrevista. Ali provo cada um dos vinhos para entender o conceito da vinícola. Faço isso porque não quero descrever apenas os aromas, como maçã, tomate, o que seja. Quero oferecer um pouco mais de conteúdo. E para isso preciso conversar com o enólogo, com o dono. É uma entrevista jornalística. Falamos sobre solo, clima, vinificação e sobre os interesses que eles têm no que fazem. A segunda etapa é provar às cegas. Atribuímos pontos sem saber qual é o vinho e assim elegemos os melhores de cada categoria e de cada país. Dividimos as amostras por região. Provamos todos os Malbecs de Gualtallary, que é uma sub-região do Valle de Uco, em Mendoza. E todos os Sauvigon Blancs de Casablanca, no Chile, que são muitos. Separamos os que obtiverem acima de 93 pontos e fazemos uma nova degustação, para corrigir as pontuações (se necessário), e aí eleger os melhores.

Este ano foram degustados mais de 5 mil rótulos. Você prova todos?
Eu degusto tudo, mas tenho um grupo que me ajuda. O trabalho começa em julho e dura quase seis meses. Passo dois meses no Chile, dois na Argentina, um entre Brasil e Uruguai e, desde o ano passado, um tempo na Bolívia e no Peru.

Qual a razão de incluir Peru e Bolívia?
Foi me oferecida a oportunidade de fazer o Descorchados na Espanha e no México. Eu declinei por entender que ele é um guia sul-americano. Sendo assim, é preciso ter todos os países que produzem vinho no continente. Também porque Peru e Bolívia são países com muito potencial. É importante incluí-los desde já.

Qual a importância do Brasil para o Descorchados?
O Chile e a Argentina são mercados produtores maiores e têm mais relevância tanto no número de rótulos quanto nas vendas do guia. Mas o Brasil é o mercado pelo qual tenho mais carinho. Apresentar a cada ano o guia aqui é para mim um compromisso sentimental com o País. Fazemos quatro edições simultaneamente: Chile, Argentina, Brasil e Inglaterra, mas a que mais me emociona é a brasileira. É um mercado que sempre tem novidades, há novos produtores entrando e temos crescido juntos. E tenho um sócio muito bom aqui [Christian Burgos, dono do Inner Group].

Recentemente você recebeu críticas por seus comentários sobre o quanto o vinho nacional ainda precisa evoluir. O que de melhor você notou aqui desde que começou a fazer o guia?
Eu separaria os vinhos tranquilos dos espumantes, que no Brasil tiveram uma evolução enorme nos últimos dez anos.

A qualidade do que provamos hoje não se compara ao que era feito no passado. Já com o vinho tranquilo a melhora tem sido mais lenta. Mas ainda assim há coisas interessantíssimas e que me agradam bastante. O meu alerta é para aqueles que desejam produzir o que a natureza não permite. O clima aqui é terrível para vinhos orgânicos. Assim como não se pode fazer um Malbec de Agrello na Serra Gaúcha. Mas sim, é possível fazer um rico Cabernet Franc em Pinto Bandeira [cidade do Rio Grande do Sul que em 2022 recebeu o selo de Denominação de Origem para espumantes]. Creio que o processo de autodescobrimento é algo que falta a alguns produtores brasileiros. A crítica que eu fiz, e que pode ter sido mal compreendida, é que o produtor deveria prestar atenção ao que o seu terroir permite. Não se pode impor algo quando faltam as condições naturais para isso.

Ainda assim, uma das características do Descorchados é valorizar produtores que experimentam novas possibilidades. Você pessoalmente aprecia essas inovações?
Não somos um guia que aprecia apenas vinhos raros. Muitos produtores que hoje estão no establishment eram de nicho na origem. Quando começamos a mostrar vinhos chilenos feitos com uva País isso era uma raridade. Eu apresento esses produtores menos previsíveis porque tenho interesse em revelar todos. Eu pessoalmente prefiro Borgonha e Barolo — ou seja, mais clássico impossível. Mas uma parte importante do meu trabalho é mostrar quem pensa de uma maneira distinta. Isso ajuda o setor como um todo.

O Descorchados é um produto lucrativo ou ainda está longe do que você gostaria como negócio?
O que posso dizer é que nós trabalhamos tranquilos, sem pressão. Jamais daremos um vinho de que não gostamos, não importa o quanto o produtor queira investir em publicidade. Chegar a esse ponto, de não depender de ninguém, é o que me dá tranquilidade. Nem todo jornalista pode dizer o mesmo. Os produtores pagam a mesma taxa, US$ 100 cada, para que possamos financiar os custos de avaliação e gerar o conteúdo. Muita gente me vê como uma assessoria enológica. E vários vinhos nasceram de conversas minhas com os produtores.